Ele nunca me bateu

Renata Varandas durante audiência pública sobre combate à violência contra mulheres (Foto: Arquivo pessoal)

Semana passada, na fila do mercado, ouvi uma moça narrando para a amiga a dificuldade que vem enfrentando: “Dá pra ver que ele me ama e por isso tem muito ciúmes. Tem hora que tenho até medo, mas ele nunca me bateu e tenho certeza de que não teria coragem”.

Nesta mesma semana, por um dia, passei para o outro lado do balcão. De jornalista que cobre audiências públicas, me transformei em convidada para participar de uma delas: a de combate à violência contra mulheres. Este é um assunto que sempre me interessou e, nos últimos anos, se tornou um grito estridente e constante no meu ouvido.

Tirei um fim de semana para preparar o material, ler, procurar depoimentos e concatenar ideias sobre o papel da mídia no combate à violência doméstica, que foi o motivo pelo qual fui convidada a falar.

Comecei a pesquisa e o que encontrei foi assustador: de acordo com os últimos dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, nove em cada dez mulheres vítimas de feminicídio foram mortas pelos seus atuais ou ex-companheiros. Aqueles mesmos que elas escolheram para dividir a vida e os sonhos transformaram seus destinos em pesadelo.

Como números não humanizam, fui atrás de depoimentos. Mulheres vítimas de violência doméstica narrando suas dores e suas lutas. Filhos que crescem neste ambiente contaminado de ódio e medo.

Meninas que viraram mulheres e repetem a história da mãe. Meninos que se tornaram homens e reproduzem o comportamento do pai. Ao contrário da violência das ruas, a doméstica é totalmente democrática. Gente rica, pobre, com diploma em Harvard ou que não concluiu a alfabetização. Família inteiras destruídas.

Chorei junto dezenas de vezes enquanto ouvia/assistia àqueles depoimentos. Um deles me chamou mais atenção: uma moça de 32 anos, que passou quase seis meses internada no hospital por causa da ira de um marido violento. Ela, incrédula, se perguntava como aquele relacionamento de conto de fadas poderia ter terminado com tal desfecho. Até dois meses antes da agressão quase fatal, ela repetia aos amigos e à familia: ele é um homem bom, nunca me bateu.

Foto: Pixabay

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