Registrando amor


Foto: Élcio Paraíso, Ohhappyday Fotografia

*Dani Dias

Há três anos virei mãe. De uma hora para outra. Estava na fila de adoção há dois anos e meio e no dia 5 de fevereiro de 2016 ele chegou, um menino lindo de sete meses. Foi uma “gravidez”de cinco dias. Recebi uma ligação da Vara da Família na segunda e na sexta ele já estava conosco, pequeno e sorridente.

Como ele havia sido registrado pela genitora, recebemos a guarda provisória do juiz. Depois enfrentamos um longo e desgastante processo que durou quase dois anos até conseguirmos a adoção definitiva, quando nosso filho ganhou uma nova certidão de nascimento com nossos nomes e sobrenomes.

Sempre me perguntei por que a genitora (vou chamá-la Julia para não expô-la) havia registrado o bebê se não tinha a intenção de ficar com ele. A Justiça brasileira permite que a genitora autorize a adoção antes de registrar a criança para agilizar a ida do bebê para uma nova família e evitar uma estadia prolongada em abrigos.

Mas Julia fez a certidão de nascimento, colocou nome e sobrenome no bebê que acabara de nascer e desapareceu. Por isso o processo se tornou mais longo porque, antes de ser colocado oficialmente para a adoção, é preciso fazer a chamada destituição familiar. Nesse processo jurídico, o Ministério Público é o responsável pela a ação e por isso a criança fica sob tutela do Estado. Os pais adotivos não são parte do processo.

Pra gente que não via a hora de ter a certidão de nascimento do nosso menino foi um período bem difícil, cheio de incertezas e ansiedades. Com a guarda provisória, por exemplo, precisávamos pedir autorização do juiz para viajar ao exterior. No médico e na escola, ele era registrado com a certidão original. Fui chamada algumas vezes de Julia e confesso que não gostei. Não foi fácil aguardar toda a burocracia jurídica, toda a demora, toda a incerteza e muitas vezes eu me perguntei: “Mas por que Julia registrou a criança?”. Egoisticamente, às vezes sentia até raiva.

Mas a vida dá voltas e a resposta à minha indagação veio quando visitei o Arquivo Histórico de Madri, cidade estou fazendo um mestrado, e pude ver documentos originais do século XVIII sobre as Inclusas, casas para onde eram levadas as crianças deixadas por famílias que não podiam cuidar dos filhos. Peguei com as minhas mãos um bilhete original de 1700 que dizia: ” Este niño se llama Juan. Viene com água que se lo echaron cuando nació y no tiene olio”.

A pessoa que o deixou, colocou um bilhete ao seu lado com o nome do bebê e explicou que ele havia sido batizado com água, mas não ungido com óleo.

Esse era o registro desse pequeno recém-nascido, que chegou ao que seria o orfanato da época com uma identidade, com um nome. A maioria dos bilhetes guardados no arquivo trazia o nome da criança e dizia se ela tinha sido batizada ou não, uma informação importantíssima para a Espanha da época. Um em especial me chamou a atenção porque dizia que o bebê era filho de “buena gente”.

A ficha caiu totalmente. Ao fazer a certidão de nascimento, Julia estava dando uma identidade ao bebê , lhe dando uma história que, se um dia ele quiser saber, terá acesso à todas informações. Durante a aula, minha professora de história, explicou: “Essas crianças eram deixadas porque as famílias ou mulheres solteiras não podiam cuidá-las. Era uma época de muita miséria e preconceito na Espanha. Mas elas não foram abandonadas, elas foram deixadas para terem a chance de ter um futuro melhor. “

Isso me bateu fundo porque nunca pensei no meu filho como menino abandonado. Julia o deixou para ele ter um futuro melhor. Deixá-lo no hospital foi o seu maior ato de amor. Eu a agradeço todos os dias porque me deu o melhor filho que eu poderia ter. E ainda teve uma coincidência que me fez chorar. Julia escolheu o mesmo nome da minha mãe, já falecida. Recebi essa informação por telefone e foi nesse momento, ainda sem conhecê-lo, que ele se tornou meu filho.

As mulheres que abrem mão de cuidar dos seus filhos são muito estigmatizadas.

São chamadas de monstras, desnaturadas, egoístas e coisas piores. É mais uma das grandes armadilhas do patriarcado para culpabilizar as mulheres pelas falhas de um sistema social e político que deveria proteger e ajudar os mais vulneráveis. Na minha opinião, é justamente o contrário. Essas mulheres amam tanto os filhos, que optam por abrir mão da criança na esperança que tenham uma vida melhor.

Julia, demorou, mas agora entendo porque você fez a certidão de nascimento. Saiba que ele está sendo muito amado e estamos cientes da nossa responsabilidade de lhe ensinar bons valores e principalmente a ter empatia. Quando for o momento, ele vai saber da sua história e do seu gesto de amor. Nosso filho é um menino iluminado. Vive sorrindo e adora socializar. “Un verdadero regalo!”


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