Certas coisas


Foto: Arquivo pessoal

Por causa do Alzheimer, a mulher que está comigo nessa foto não se lembrava mais de mim, mas eu sabia exatamente quem era ela. Tia Judith. Forte e determinada, teve uma vida dura. De origem pobre, formou-se com dificuldade, construiu uma carreira respeitável e sempre ajudou toda a família.

Sonhava ser mãe, mas não podia engravidar. Decidiu com o marido adotar uma criança. E foi assim que, na década de 80, uma recém-nascida de olhos verdes, cabelos louros e pele branca chegou. Era a Ludmila. Tudo corria bem com aquele bebê que parecia de propaganda de xampu, até que, aos setes meses, ela foi diagnosticada com paralisia cerebral. Algum tempo depois, veio o divórcio.

Quase todos os dias, minha tinha ouvia de alguém que deveria “devolver o bebê”, porque teria “sido enganada” pela mãe biológica. Firme, ela explicava que “filho não é mercadoria” e que “não sabia mais viver sem a Lú”. Aquela mulher miúda se tornou gigante, carregando nos braços a filha para quem os médicos não davam mais de cinco anos, mas que, graças aos cuidados da mãe, vivera 30.

Um dia, estávamos no sofá as três, quando a Lú, num esforço hercúleo para levantar o bracinho atrofiado e abrir os dedos encurvados, tocou o rosto da mãe, sorriu e ficou olhando para ela. “Que maravilha esse carinho. Sou uma mulher de muita sorte, não sou?”, disse minha tia. Outras pessoas achariam essa fala uma loucura, mas entendi exatamente o que significava.

Tia Judith enfrentava problemas como todo mundo. Porém, todos os dias, era inundada por um amor incondicional, puro e sem barreiras, que compensava tudo. Ela não queria outra filha, outro casamento, outra vida. Ela tomava a realidade que se apresentava e fazia o melhor que podia com ela. Abraçava o possível com força e dedicação.

Ela se foi semana passada. Tentei escrever uma homenagem no dia, mas travei. Alguns afetos, de tão grandes, são indizíveis. Como na música do Lulu Santos, parece que “tudo o que cala fala mais alto ao coração”. É isso, tia. Te amo e muito obrigada. Tem certas coisas que eu não sei dizer.

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