Deus é padrasto

Foto: Arquivo pessoal

“Vamos ao bar da esquina, que vou te apresentar uma pessoa”. Foi assim que minha mãe me levou para conhecer meu padrasto. Eu tinha 15 anos. De cara, achei muito estranho aquele homem que, apesar de ser culto e de modos refinados, andava a pé, com roupas puídas – e que quando comprou um carro, para o meu desgosto escolheu um Fiat 147 verde e velho.

Meu padrasto se chamava Márcio e era médico. Por causa da minha imaturidade, levei alguns para compreendê-lo. Embora tivesse se formado numa das melhores faculdades universidades do País e feito mestrado na Europa, eu não entendia por que ele não havia ficado rico. É que seu valor não estava no bolso, mas na alma e no trato com outro.

Em vez de abrir um consultório particular e cobrar consultas caríssimas, ele preferiu atender os feridos de guerra na África; os índios sem amparo no Xingu; os pacientes do SUS no entorno do Distrito Federal. Meu padrasto era um médico humanista que gostava de gente, e não de posses e cargos.

Brava e impaciente, minha mãe me criou para ser forte. Já ele me ensinou a ser suave. Foi dele que ganhei o primeiro livro de poesias – “Para uma menina, com uma flor”, do Vinícius de Moraes –; o primeiro buquê de rosas; o sorriso mais bonito ao me ver pronta para o baile de formatura; o consolo mais delicado nos momentos de tristeza.

Eu já o tinha como pai, até que um dia adoeci e ele ligou na farmácia. Aflito, disse para o atendente: “Traga logo o remédio, que minha filha não pode esperar!”. Pronto, éramos mesmo pai e filha. No hospital, antes de morrer, ele estava fraco e não conseguia falar. Então olhou para mim e fez um coração com as mãos. É a lembrança mais bonita que guardo.

Há dez anos ele se foi e não podemos mais comemorar o Dia dos Pais juntos. Ele me mostrou que filhos não nascem de combinações genéticas, mas de uma escolha do coração. Dizem que Deus é pai, não é padrasto. Mas acho que Deus é padrasto, sim. Onde houver um homem disposto a dar afeto e cuidado a um jovem ou uma criança, haverá sempre esse divino amor paterno.

Foto: Arquivo pessoal

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