Quem são os cegos?

Foto: Depositphotos

*Mel Vilanova

Estava no ônibus. Subiram ao coletivo duas pessoas, uma mulher e um rapaz, ambos cegos. Eles se sentaram na poltrona perto do trocador, mais ou menos perto da porta de saída. Na descida, fiquei de pé, próxima dos dois, e escutei um pouco da conversa deles com o trocador. A mulher disse assim: “Tenho muita curiosidade de conversar com quem enxerga, pra saber se realmente as coisas são complicadas desse jeito”.

Vejam que frase. Não me lembro da resposta dele, só de que foi rápida. Mas em pensamento eu dei a minha resposta àquela mulher. Além de um óbvio “sim, as coisas são complicadas assim mesmo”, eu refleti um pouco sobre o uso que ela fez da palavra ‘realmente’.

Será que nós que enxergamos entendemos “realmente” o mundo? Será que nós, que enxergamos, temos mais capacidade de entender o mundo do que aqueles cegos do ônibus? Ou será que, ao contrário, não caímos na armadilha, propiciada pela visão, de ficarmos presos à superficialidade do visível?

Talvez muitas vezes nós, que vemos, não enxergamos de fato, como os cegos de alma tão bem apresentados por Saramago. A conversa entre eles prosseguiu por uns minutos até que eu e eles descemos do ônibus. Ajudei-os a atravessar a rua, quase falando pra ela que “não”, que a vida não é menos complicada pra quem enxerga, que eu mesma às vezes me sinto muito deslocada nesse mundão… mas calei.

Apenas indiquei a direção que achava ser a melhor pra eles, quando fui corrigida pelo rapaz que, muito melhor localizado que eu, disse ser melhor seguirem outro trajeto. E ele estava certo. Pra eles, o caminho que eu indiquei era mais complicado, apesar de mais reto não tinha muitas referências.

Fiquei ali por alguns segundos vendo-os ir embora, admirada com seu senso de referência. E encantada com o cuidado que um tinha com o outro, sentimento que muitas vezes nós ‘videntes’ esquecemos de exercitar. Segui meu caminho pensando naqueles dois cegos e na curiosidade simples e tão profunda daquela mulher.

*Mel Vilanova – No lado A, é geógrafa e servidora pública. No lado B, é uma entusiasta da expressão através da Arte (dança, canto e escrita).

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