Ilha de areia muito branca

Foto: Arquivo pessoal

*Paulo Williams

Vejo meu pai em sua ilha de silêncio, num mar de esquecimento. O que antes se manifestava com austeridade e fortaleza, agora se reduz a um semblante despido de vigor, um olhar vago e um franzir da testa pedindo socorro.

Suas lembranças – uma a uma – foram se desconectando da razão, ficando opacas até desfazerem-se num sono vago. Se a memória é o que nos dá identidade, se nossas lembranças tramam nossa história, o que fica quando estes fios se rompem? São as recordações que nos conferem presença, sentido e alegria.

Alegria de voltar aos quintais da infância e descobrir – o que era vasto aos olhos da criança – restaram diminutos para o adulto. Descobrir entre papéis velhos aquela carta apaixonada do tempo do colegial e perceber com surpresa a coragem e despudor de termos sido ridículos no amor. Achar no meio da arrumação aquilo que julgávamos perdido, que o tempo fez perder a função, mas a memória aumentou sua importância.

A emoção incontida da chegada de um filho, com seu primeiro choro de vida, o espanto absurdo de perceber que a partir dali sua vida nunca mais será a mesma. A despedida doída à alguém que se ama e que partiu fora do combinado para a outra margem, nos deixando órfãos de sua presença.

Sair na chuva, sapateando entre poças, lavando-se de todo o peso ordinário do cotidiano.

Colocar a cabeça para fora da janela do carro na estrada vazia, sentindo o vento romper as pálpebras do juízo e gritar forte qualquer coisa incompreensível. Cantar alto no carro aquela música do Belchior. Dançar despretensiosamente e sentir o corpo inteiro –, feliz deslizando pelo espaço.

Olhar o mar, sentir o mar, deixar-se no mar. Voltar àquelas paisagens carregadas de afetos. Perceber a ação do tempo moldando nosso corpo e alargando nossa fé. Reconhecer quantos equívocos se fizeram pelo caminho. Que o riso foi sempre a melhor maneira de se perdoar. Que o tempo transformou pais duros em avós benevolentes.

De aceitar o efêmero das coisas, a brevidade da vida. Quando a memória faltar – quando a lucidez se esconder no horizonte – restará o corpo resistindo, firme e rígido. E em algum lugar entre neurônios, num compartimento secreto, estarão todas as lembranças, o sentido e aventura de uma vida inteira.


*@_paulowilliams_ é escritor e roteirista

“Este texto foi escrito para o meu pai, Walter Roberto de Souza, que desde 2016 vive uma doença neurológica degenerativa, diagnosticado como Alzheimer, Desde então vamos reaprendendo a conviver com a doença e o tanto que ela transforma o indivíduo, quando apaga a memória. Cada vez que ele lembra de alguma coisa, por menor que seja, reconhecendo um filho ou um neto, ao conseguir pronunciar alguma vontade, como comer ou quando consegue se despedir de nós com um simples “um beijo filho”, quando consegue fazer um carinho na minha mãe, comemoramos estes momentos como se fossem renascimento da vida que se oculta na sombra do esquecimento.
Para ele dedico este texto…”

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