Zummm

Anna Davison no Blog Vida de Adulto
Foto: Arquivo pessoal

*Anna Davison

Ontem de madrugada escrevi mentalmente um texto que achei incrível. Talvez meu melhor texto. Devia ter registrado, não o fiz, perdi, pena. Acho que começava com zummm. O zumbido enlouquecedor dos pernilongos noite adentro.

Seus pequenos corpos causam vagas de vento. Deslocam o ar e me criam pequenas aragens nos cílios. Me irrito, me aquieto e tento adivinhar para onde vão, para, num golpe certeiro, reduzir aquele corpinho a uma gosma de sangue e pó. Meu sangue. Faz calor. A pele suada gruda no lençol e os zumbidos seguem.

Mato um, dois, três. Eles vêm separados. Uma coreografia de pequenos barulhos. E aquele ventinho quase imperceptível. Meu sangue quente pulsa nas veias. Também dentro tem zumbido. Parte de mim se desfaz em pó. Como as asinhas. Também eu sigo no meu voo errante.

Os pernilongos têm personalidade. Uns voam rápido, batem no meu rosto, levantam o ar em frenesi. Outros são mais suaves, quase imperceptíveis, sorrateiros. Eu sou como os últimos, sigo cada vez mais silenciosa, até encontrar um outro. Aí meus zumbidos crescem, preciso falar, como se me alimentasse disso.

Eles se alimentam do meu sangue, eu, dos meus pensamentos. Esses sim erráticos e acelerados. Volto a dormir, acordo com o barulho do fumacê. Vieram eliminar meus companheirinhos indesejados. E eu quase desejo ter entendido o que tentavam me dizer zumbindo. Levanto. Saio. Vivo com o zumbido que agora é só meu.


*@annadvsn é antropóloga com um pé nas artes. “Venho explorando a escrita como espaço de expressão do que me transborda. Pinto, bordo, viajo e vou tecendo fios de mim pelo caminho.”

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