Efemeridade (ou um mundo sem espelhos)
Foi por esses dias, ocupando-me da curadoria digital de todas as minhas contas nas mídias eletrônicas, que me ocorreu uma reflexão. Convergiram para este mosaico introspectivo: muitos encontros virtuais, leituras novas, leituras revisadas, filmes e a própria experiência diária nas redes sociais. Ato contínuo: apertar um botão e, simplesmente, deixar de seguir. Iniciou-se o detox digital.
Resultado: menos solicitação na minha timeline e eu não mais respirando “por aparelhos”. Qual o critério adotado? Ah! Isso, sim, tem relevância. Porque, quando se está num universo em que qualquer habitante alfabetizado pode dizer qualquer coisa até que essa permissão lhe seja cassada pelo Demiurgo algoritmo ou pelos serviços de Inteligência, é raro encontrar conteúdo autêntico, autoral, original – “relevante”, como dizem.
No entanto, conteúdo assim, para mim, é aquele que me adensa o Conhecimento, discorre sobre um intertexto que instiga, enriquece o
vocabulário, que agrega Ciência aos meus experimentos. E, também aquele que me desvenda o espiritual: a redenção. De modo empírico, aprofundado, testificado, testemunhado e, por isso, libertador. O resto, eu vejo no jornal. O que espero é que o texto me surpreenda. Espero que se avolume a ponto de romper a fina película da qual a modernidade é feita: a superficialidade.
Pois bem. Iniciei a faxina com dois critérios. O primeiro: Contém verdade? E depois: quão humano isso é? Seria isso exigir muito das redes que representam a sociedade? Honestamente, ainda não tenho essa resposta. Passei a escutar com os olhos. Ou seria auscultar? É outra pergunta que me intriga.
Outro dia, vi um post que era uma caixa de texto sobre um fundo amarelo comemorando a conquista de 1k de seguidores em uma semana. Detalhe: não havia legenda. Aquela era “toda” a mensagem. Botão “deixar de seguir” pressionado instantaneamente.
Outro post alertava que Stories existem para serem vistos. Oi? Significa que
meu comentário estraga a experiência do usuário? Ou “Você” só sabe desenhar mesmo, meu bem? Já me acendeu o alerta! Estaríamos, então, na iminência de uma era em que a narrativa pictórica vai sobrepor-se à Escrita? Ora, houve um tempo em que a Humanidade recorria às imagens para transmitir seu legado. Isso foi no Paleolítico. Quanto a mim, toda vez que algo me interpelar, reverberar, ativar meu hipocampo, vou me manifestar. Como o faço neste texto.
Minha potência de vida me impede a passividade de apenas visualizar, como se estivesse num vagão a esperar as janelas do outro comboio passarem velozes em paralelo. Se nós, humanos, não continuarmos a escrever nossa história, os robôs o farão. Isaac Asimov que o diga. Profético, lá em 1950, na fala de um dos robôs, algo como “Humanos são provisórios”. A memória da Humanidade estará com os dias contados se estiver sendo delegada progressivamente a um mero lugar na Nuvem.
Lembro-me de ouvir o escritor moçambicano Mia Couto versar sobre a Memória. Segundo ele, quando começarmos a nos dar por satisfeitos de
guardar nossos registros mais significativos num dispositivo móvel, nada ficará dentro de nós para o Futuro.
Ele disse isso em 2014. Outro ponto que me preocupa nisso tudo é o lugar da Escrita. Sabia-se que aquele que domina a Escrita saberia contar a História. Desde a Escrita Cuneiforme isto está posto entre nós. Passamos a aceitar que não mais será assim? Se já começamos a alfabetizar crianças pelo meio eletrônico, o que saberão fazer quando lhes entregarem um lápis e uma folha de papel? Saberão redigir algo ou desenharão pictogramas?
Penso aqui, com meus botões, que o que se busca nas redes sociais são espelhos. Buscamos ver um pouco de nós refletido no rosto, olhar, corpo ou em gestos e ações simples da vida diária.
Porque a internet nos permite isso. Temos espelhos mágicos ao alcance da mão: portais dimensionais de poder onde nada mais estará oculto no momento em que for solicitado. E emergirá, antes de um piscar de olhos, das profundezas do algoritmo.
A todo tempo somos convidados a tomar assento, pois o prato servido está posto à mesa – em fotografia. Cobertas e travesseiros são flagrados pela câmera enquanto o autor do post diz, simplesmente, Bom Dia. “Enquanto eu parava” tudo aqui, na plataforma biológica, que também me solicita, a verificar aquela notificação. Parece óbvio mencionar, mas buscamos por semelhanças em nossos semelhantes. E o que encontramos? Efemeridade.
Ao contrário disso, a imagem que viralizou na minha mente foi aquela da nobre cidadã libanesa ao seu piano, espalhando música enquanto a poeira pousava mansamente sobre o caos. Senti tanta verdade naquele gesto que revisitei mentalmente a imagem por semanas a fio. Houve morte e destruição em Beirute. Isso, no meio de uma Pandemia! Mas o que vi ali me lembrou da frase de outro profeta: “Quero trazer à memória o que me pode dar esperança”. É disso que preciso!
A pianista no caos é uma imagem sem filtros, mas com várias camadas de vida. O olhar da neta a capturou primeiro. Honra e encantamento. Por esse gesto, hoje se sabe que o nome da avó é May Abboud Melki. Eu também sou avó. E este ímpeto de vida que a moveu ao piano, a tocar uma valsa de Despedida, reverberou e reverbera em mim.
Estou com ela, ali ao piano: minhas mãos sob as dela. Estou com ela aqui dentro, em meu teclado de computador: as mãos dela sob as minhas. Trazê-la novamente ao cenário digital após o que se considera “tanto tempo depois” foi proposital. Para que meu espelho não se perca no efêmero panteão das imagens velozes.
* @mirnacristiane Cases é educadora, especialista em aprendizagem humana, produtora de conteúdo, escritora de livros ainda não-publicados, mulher amada, mãe e avó feliz.