Asas cortadas não fazem verão

Taciana Collet no blog vida de adulto
Foto: Depositphotos

*Taciana Collet

Eles acordam me acordando. Um coral-despertador na minha janela. Difícil resistir ao chamado. Levanto da cama com os passarinhos. Eles me chamam de volta do passeio noturno pra vida. Despertar assim, sem alarme, me inspira tanto que muitas vezes saio de casa pra explorar as redondezas onde moro, agradecer a cantoria e dar bom dia a eles. Fico tentando adivinhar quem é o dono do canto do dia. Se o sabiá, o joão de barro, o beiia-flor.

Quando não saio, um deles vem me cutucar pela janela. Bate o bico no vidro e me lembra da prioridade do dia: apreciar. Paro o que estou fazendo e respiro. Comecei a dar bom dia a passarinho no auge do isolamento imposto pela pandemia. Vai parecer loucura, mas garantiu minha sanidade mental. Ia passeando mascarada pela quadra vazia de gente e eles, em aglomeração, vinham me fazer companhia.

Agora mesmo, enquanto escrevo, um bando de andorinhas, em banda, cantam o verão no meu pedacinho de céu lá fora.

Desconfio que desconfiam que escrevo sobre eles. Dia desses, num desses passeios exploratórios, uma mulher apareceu com um pássaro no braço. Me encantei. Ela me apresenta a calopsita com que divide o apartamento. A vontade foi a de levar aquele manso passarinho pra mim. Mas com cinco minutos de conversa, veio o incômodo. Por que ele não cantava e ali se aquietava?

— Eu corto as suas asas, já perdi dois porque não fiz isso.

Cortar as asas? A natureza do passarinho é voar. Apenas pensei, nada disse e continuei a caminhada, mas a imagem da calopsita quietinha veio comigo. Caminhando e pensando em todas as asas cortadas para tentar manter por perto o que se deseja.

Sigo e os passarinhos me seguem pulando de árvore em árvore. Me alegro ao imaginar eles fazendo companhia a outros, em outras praças, de outros bairros e, volta e meia, voltam pra cá. Ou não. O fato é que o jardim da praça tão bem cuidado está sempre cheio deles. E quando aqui estão, eles ficam sendo, apenas sendo quem vieram ser.

Se corto as asas pra manter um deles comigo, tento podar a vontade do passarinho de ser passarinho. Não, não quero um pra chamar de meu. Por mais que voem alto (e eles voam), nunca faltaram passarinhos cantando pra mim.


*@tacianacollet é uma das fundadoras do Vida de Adulto, escreve às sextas-feiras, duas vezes por mês.

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