Retrato
Traço a traço, a letra polida na ponta do lápis ia desenhando o branco do papel. Folha a folha, o ofício ia lhe consumindo os dias. Ela, que tinha muito a dizer, quase nunca dizia. Deixava a literatura publicada dizer em seu lugar.
Se alegrava no contentamento da própria alma que vivia de ler emoções alheias. Dostoievski, Clarice e Drummond.
Escrever é uma guerra. Às vezes, é preciso apreciar o não-escrever das coisas.
No silêncio do que não foi dito, moram gigantes. Ela, porém, desejava despertar os gigantes que a habitavam. Grito, papel e canção. Debruçá-los no tecido frio da tela em branco. Aprisionar-se à primeira vista. Amor. Queria escancarar os poros, deixar escapar a escrita que há muito a impulsionava.
Febril e nectarina, espreitava o comportamento humano como quem observa um milagre prestes a sucumbir. Mergulhou na literatura alheia a fim de encontrar o próprio caminho, mas descobriu que o caminho só é próprio quando as palavras vazam das mãos dela. Podia fazer guerra com aquela descoberta, mas fez escrita.
*@wendiamachado é escritora, jornalista e poeta. Mudou-se para Nova Iorque há três anos para realizar um antigo sonho: ser uma escritora publicada na Big Apple. Seu primeiro romance será publicado em 2021.