E a luz segue a abrir os poros
Num dia de quarentena: eu, minha mãe, meu padrasto. Algumas caixas se abriram por obra das mãos dela. Dentro, papéis esquecidos, comidos, alguns até rasgados, de uma outra vida. A minha, há um tempo atrás.
Encontrei o texto “Da solidão”, de Cecília Meireles, estava no segundo ano e ainda não podia sentir as enxurradas que sinto hoje. Eram outras tempestades. Atividade de interpretação de texto. Respondi de lápis. Não coloquei data. Pensei que sobreviveria ao final do texto sem lágrimas, mas os rios emergiram secos, num aperto maxilar, num preenchimento inesperado dos sulcos, numa dor de limite.
Só que não era tristeza (e dizer isso é uma vitória). Em algum momento do ano passado, perguntei, em análise, quais outros afetos a gente podia sentir.
A tristeza, aí sim, estava inflada, dona, ditadora, dominante dos segundos perdidos na ausência de escapes. Nunca se perde um segundo, mas era essa a sensação que eu tinha.
Respondeu-me que existiam os pequenos afetos, aqueles que sentimos ao observar a luz do sol se esconder atrás das folhas verdes, o barulho miudinho da água que corre em alguma fonte escondida, o gargalhar alto e claro dos meninos que correm, ou até o vazio imprevisível do quarto que permanece ali (ainda que o mundo se desague em desastre).
Eu precisei rever os detalhes para aprender a ficar. A pergunta era sobre como conseguem as pessoas que sofrem, ainda assim, amarem e sorrirem e dançarem. Encontrei nelas os detalhes. Esses minúsculos pedaços de vida que insistem em existir. Essa imensidão que, ora peso, ora liberdade. Esse mundo submerso em moléculas tão estrangeiras aos nossos pulmões.
Faço notas mentais: sinto medo de errar. A perda, a gente aprende. Escutar é descer de pódios e abdicar do poder de ser aquele que sabe. Dançar é explodir. A quietude talvez seja um bom lugar de digestão. Porque o mundo é cheio demais.
Num misto de loucura e contentamento, nasce aqui uma miragem estranha: corpo derretido, tocando em pequenas porções de profundidade. Passa.
E a luz segue a abrir os poros.
*Ana Beatriz Braga Viana é estudante de psicologia (UFMG) e de psicanálise. Escreve e dança para respirar. Interessa-se pelas pequenas coisas que nos ligam à vida e pelos mistérios que tornam permanente a morte. A cada dia, aprende um pouco mais sobre o silêncio.