ESPELHO

Agnes Melo escreve sobre suas lembranças, livros, gibis e músicas
Foto: Arquivo pessoal

*Agnes Melo

Nunca fui de me olhar muito no espelho. Mas, de repente, aos 54 anos, despida de todas as inseguranças sobre a minha aparência que me acompanharam ao longo da vida, resolvi me contemplar todos os dias depois do banho:

– Tá tudo bem, senhora? E me questiono aonde minhas escolhas me levaram.

Então tento me enxergar sem óculos e, com imagem embaçada, vejo as pálpebras caídas, porém que se avivam quando abro um sorriso; vejo os cabelos curtos grisalhos, as rugas, a pele morena, as pintas que são minhas marcas desde a adolescência. Gosto do que vejo. Gosto de todas as histórias que carrego.

Lembro de na 5ª série ter sido desenhada no quadro da escola por um garoto que eu achava lindo, ressaltando meu nariz largo e todo meu desconjunto pré-adolescente. Todos os meninos riram. Nunca esqueci dessa cena, porque eu também desenhava e achava que tinha algo em comum com aquele que foi meu primeiro crush da vida.

Foi ali, naquele momento, que a leonina se recolheu. Mentira, outros acontecimentos da primeira infância já tinham me diminuído de tamanho. Mas foi ali também, naquele momento, que eu decidi que nunca na minha vida eu zombaria de um ser vivente. Não sei se consegui. Se não, peço desculpas a quem ofendi.

Mas também lembro de, aos 10, 11 anos, ter descoberto os quadrinhos. E eles foram meu refúgio por muitos anos. Todo tempo livre que eu tinha me fechava no quarto para ler as aventuras da Mônica, do Tio Patinhas e do Pato Donald. Uma singela música de Luiz Guedes e Thomas Roth (Ela Sabe Demais) era o perfeito retrato – Ela lê um gibi, ri sozinha, lá no fim da página beijo minha heroína.

Foi por causa dos gibis que agarrei amor à leitura e iniciei uma imersão em livros que me marcaram profundamente.

Cem Anos de Solidão, A Insustentável Leveza do Ser, 1984, Admirável Mundo Novo. E foi por causa do amor à leitura que cursei jornalismo (só quem é da periferia sabe o que é ser a primeira pessoa da família a fazer uma faculdade).

Quando eu só tinha a mim mesma e a lembrança do meu retrato no quadro da escola minha decisão foi me levantar e enfrentar essa vida. E a mulher que enxergo hoje no espelho é linda e está em paz consigo mesma.


*@agnesssmelo, jornalista, alma livre, 54 anos.

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