Marcas do tempo

Foto: Arquivo pessoal

*Danielle Teixeira Tavares Monteiro

Tudo tinha um cheiro peculiar: a madeira dos móveis, a cristaleira com os pequenos bibelôs, a foto que remetia aos anos 30, o paninho de centro sobre a mesa, o vasinho de flor, o chão de taco encerado. Cheiro de casa de vó.

Minha avó estava sempre sentada em sua cadeira de balanço, perto da porta, acompanhada por um velho relógio vermelho descascado. Quase sempre o relógio parava por “falta de corda”, sendo necessário rodar a borboleta que ficava na parte de traz. Triste era quando rodávamos a borboleta errada e o ponteiro que marcava a hora saía do lugar.

“ — Pega o telefone. Liga para o 130.”, número que informava a hora. Não sei se ainda existe.

Sempre que eu passava por aquela cadeira, minha avó me pedia para dar corda no relógio, ela não conseguia fazer sozinha por conta do Parkinson. Às vezes, eu fugia pela porta da cozinha para não ser vista. Coisa de criança. Até que um dia, no auge de minha impaciência, perguntei a ela:

“ — Vó, vamos comprar um relógio que não precisa dar corda? Assim a senhora não vai precisar pedir para a gente fazer isso toda hora.”

Foi quando ela me fitou com o olhar e disse:

“ — Netinha, se eu comprar um relógio desses, não terei a chance de ter você aqui, perto de mim, todos os dias, parada olhando para mim, com seus dedinhos finos, a rodar a corda do relógio. Mas, me conta, como você está?”. Sorri, com raiva, e saí, retornando no dia seguinte para dar corda no velho relógio.

Hoje o relógio está em minha casa, tive a chance de senti-lo no isolamento, compreender as marcas do tempo, a necessidade de sua corda e o vermelho descascado. Ele se tornou conexão entre o que fui e o que sou, trouxe a proximidade distante entre minha avó e eu. O relógio tem uma parte viva, a relação que criamos a partir dele. Que bom tê-lo em minha estante e poder ver as a corda gasta de tanto girar.

Acabo de descobrir que o 130 ainda existe e, quanto ao relógio, todas as vezes que ele me vê, ele pergunta:

“ — Como você está?”.


*@danimontvares é mãe, esposa, assistente social, psicanalista, mestre e doutora em Psicologia. Idealizadora do blog Imersão @escrita_imersiva, no qual apresento meus textos e expresso as manifestações de um olhar que olha.

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