Despida em tempos de corona
Venha até o apartamento 303. E quando você entrar, vai me encontrar despida de tudo. Na pandemia, na peste, não há roupas. Não há tinta no cabelo. Nem botox na testa. Ou unhas feitas. Estarei no meu melhor moletom. Serei apenas eu.
Verá a verdadeira cor do meu cabelo. Grisalho. Minha pele desbotada pelo confinamento. Minhas ideias confusas, ou talvez nunca antes tão claras, talhadas pelo isolamento. Não estarei escondida atrás de uma roupa de executiva, da mulher bem sucedida. Nem de um crachá. Serei a equilibrista dona de casa e profissional, preocupada com o trabalho e com a próxima refeição. Lutando pela sobrevivência.
As taças apontadas para o céu foram substituídas por vassouras, aspiradores, baldes e água sanitária. As refeições em restaurantes badalados por cestas de orgânicos. As joias e acessórios por máscaras de pano. Os encontros reais por virtuais. As viagens por livros. Os treinos no lago ou na academia por polichinelos.
Os abraços e carinhos ficaram no vazio. Na ausência da pele, recorro às lágrimas, lavagem da alma, purificação.
A pandemia do corona derrubou todos os filtros. Nos reduziu a nós. Diante do espelho, nos deparamos com a dura realidade. Com a finitude. Sem voltas, sem maquiagem. Mais do que antes sabemos que só o amor nos levará até a outra margem em meio ao tsunami.
Faça as pazes com seus familiares. Mande um “estou com saudades” para o seu amigo de infância. Diga pro seu amor da adolescência que nunca o esqueceu. Perdoe os seus algozes. Peça desculpas.
Fugimos por tanto tempo de nós mesmos, que um vírus (Corona), uma estrutura microscópica, sem vida, foi capaz de nos silenciar e nos fazer olhar pra dentro. E essa parece ser a chave da sobrevivência.