Ressignificar memórias para encontrar leveza

*Rachel Mortari

Pouco antes do sinal bater, formavam-se duas filas. As meninas eram sempre as primeiras a saírem para o parque e podiam escolher o melhor brinquedo. Talvez por causa da letra do nome, era sempre uma das últimas e nunca conseguia brincar no balancê, não dava tempo antes do recreio acabar.

Naquele dia, talvez tivesse me imbuído de uma coragem extrema e negociado o primeiro lugar na fila com alguém. Não sei como foi, não lembro muito bem o que eu era antes disso no alto dos meus prováveis seis anos, mas sei bem as consequências daquela manhã na minha vida.

Quando o sinal bateu, saí loucamente rumo ao balancê tão esperado.

Era a primeira vez que iria me balançar no horário do recreio sob os olhares de desejo das outras crianças, o mesmo que eu alimentei por muito tempo.

Mas justamente naquele dia, a professora mandou os meninos primeiro e eu, na minha ânsia, não percebi. Quando me vi no meio do pátio, rodeada pelos meninos, olhei para trás e vi as meninas ainda em fila e a professora dentro da sala olhando para mim, paralisei!

Passei anos da minha vida parada no meio daquele pátio.

Com medo de arriscar, vergonha da opinião das pessoas, do riso alheio, de estar fazendo a coisa errada. Podia ter sido diferente, não ter me importado e ido me balançar ao vento. Mas não fui.

Talvez a história não tenha sido bem assim, mas é desse jeito que minha alma se lembra e pode ter sido a origem de tanta insegurança na vida. Ter trabalhado mais de 20 anos nos bastidores, como assessora de imprensa, pode ser uma consequência.

Para ressignificar essa lembrança, primeiro precisei reconhecer e associar tudo isso a alguns monstros que moravam embaixo da minha cama.

Além de reconhecer, ressignificar. A Rachel adulta foi lá, pegou a Rachelzinha pela mão, acolheu a solidão daquela pequena e a levou para merendar na sombra de uma árvore bem linda. Acolhida e integradas, foi possível ter uma atitude mais incisiva na vida.

Hoje, como terapeuta, me permito arriscar de novo e correr loucamente atrás do balancê.


*Rachel Mortari, do @girassol.curaearte, é jornalista, consteladora familiar, analista junguiana e adora gatos e banho de mar.

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