Sobre esvaziar

Noeli Nobre no Blog Vida de Adulto
Foto: Arquivo pessoal

*Noeli Nobre

Ester e as bonecas que eram minhas até poucos dias atrás. Por milhares de anos eu as mantive em um armário escuro, deitadas de olhos fechados, adormecidas. Não me desfaria nunca delas, resquício da infância feliz na casa da vila.

Foi a própria Ester quem outro dia pediu, que a deixasse brincar com os brinquedinhos do armário. Como ela soube? A bichinha já estava escalando as prateleiras, eu a contive. Não, Ester, outro dia. Em seguida pensei: melhor essas bonecas ganharem vida no mundo de uma criança do que ficarem aqui em cárcere privado. Foi assim que as libertei para um novo ciclo. Isso me deu uma alegria. À Ester e às bonecas também.

Estou falando de bonecas, mas troque por pessoas e sentimentos, dá no mesmo.

Os últimos meses têm sido um longo esvaziar. Como naquele exercício do yoga em que você exala até não poder mais e, quando pensa que o ar acabou, faz uma pausa, então exala mais e ainda tem ar para sair. E o ar sai, esvaziando peito e mente, e fica tudo leve, e é bom.

Houve também resgates. Da música, por exemplo. Meus dias estão musicados como há muito não eram. Agora eu mesma coloco música na minha vida, não mais espero que outras pessoas o façam. Porque ultimamente ando numa vontade absurda de viver.

Reescrevo o que quero da vida. Sem bonecas, sem pessoas, sem sentimentos antigos. Cada pequeno ato – uma sobrancelha feita depois de seis meses – me dá uma deliciosa sensação de recomeço. Um reinício no vazio, um caderno em branco que acabei de ganhar para preencher dia a dia, folha a folha.

Mas eu comecei falando das bonecas que eram minhas e agora são da Ester, não foi?

Tenho em casa um armário vazio.


*@noelinobre , brasiliense de raízes bandeirantes e amazônicas. Adepta do sonho, amante das palavras.

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