Minha vó me deixou o tempo

Não sou viúva. Uma das duas alianças que uso na mão esquerda era de minha vó. Ela me deu de presente poucos meses antes de morrer. Me chamou no quarto e disse é sua. Não queria aceitar, ela insistiu, colocou no meu dedo e não tirei mais. Nos casamos pra sempre naquele dia, justamente no dia em que ela me avisou que estava partindo.

Cinco meses depois, quando o fim de fato chegava, chamou todo mundo da família pra se despedir. Eu fui com a aliança no dedo e o coração confiante.
Para cada um, minha vó tinha um recado de vida. Descobri, nessa última visita, que minha vó sabia exatamente o que se passava comigo sem eu nunca ter falado nada pra ela.

Honra teu nome, minha filha.

E me entregou dois relógios. Os mesmos relógios que eu tinha comprado de presente pra ela, um de Natal, outro no aniversário de 80. Um deles é o que eu uso diariamente. Parece vintage e um pouco apertado, mas eu não tiro. É relógio de vó mesmo e me orgulho disso. Eu ando carregada de lembranças dela. Minha vó vai comigo pra todo lado. É estranho o que vou dizer, mas sinto ela mais viva do que antes. Antes, ela morava longe quatrocentos quilômetros de mim, agora ela mora dentro.

Quando minha mãe e os irmãos foram dividir os móveis da casa da minha vó, me perguntaram o que eu queria.

O porta-retrato com a nossa foto.

Ela colecionava fotos dos netos na cômoda embaixo da televisão. Mandaram a foto e, sem eu pedir, o relógio da parede de azulejos da cozinha. Ele tinha sobrado na divisão. Eu ri sozinha. Era o terceiro relógio que minha vó dava um jeito de me entregar. Não podia ser acaso.

Entendi que minha vó me deixava o tempo. O aviso da finitude pendurado agora na parede da minha cozinha. O tempo guardado, aquele que não volta, marcado no relógio mais antigo, sem bateria, que deixou de contar as horas. O tempo que resta passando no relógio do meu braço esquerdo e que também vai parar um dia.

A aliança do tempo eterno entre nós duas. Honro meu nome, o seu nome, vozinha, o dos meus pais e de todos que vieram antes de mim. Pode seguir em paz. Encontro você quando não houver mais tempo.