Continuo até aqui

Foto: Arquivo pessoal

*Paulo Pimenta

Era agosto de 2002 e o Brasil estava a mil por conta das eleições. Meu pai me convidou para ir ao gabinete de um candidato amigo dele. Eu disse que ia, mas pedi para descer um pouco e ficar embaixo do prédio brincando. Ele disse que achava melhor não, mas insisti – precisava usar meu tênis-patins novo. Contrariado, ele cedeu.

Meu pai sempre foi bravo. Perdia a paciência por pouco e estourava mais rápido que milho de pipoca. Não era desses de ficar passando a mão na cabeça. Quer dizer, só fingia ser assim. Tinha um coração enorme, capaz de esconder tudo isso e mostrar só as melhores virtudes.

Naquele dia, desci e me encontrei com uns amigos. Estava todo arrumado para nossa visita. De repente, ouvi meu pai me gritar, uma voz longe. Segurei no selim da bicicleta do meu amigo com as duas mãos e ele me puxou pela rampa. Bem no finalzinho, uma de minhas rodinhas fechou. Mergulhei. No asfalto. Quando consegui me levantar, vi meu pai me esperando.

Com os olhos marejados, falei que não ia mais, mas ele não concordou. Disse que eu ia, sim. Já chorando, perguntei se dava tempo de trocar a roupa e fui interrompido. Mandou eu entrar no carro e me deu uma garrafinha de água para limpar o sangue. Só isso. Falou que eu tinha de pensar mais antes de fazer as coisas e aprender a obedecer.

Quando chegamos ao gabinete do amigo dele, ele se desculpou por eu estar daquele jeito e contou a história. Pensei que fosse ouvir mais uma bronca, mas foi diferente. A risada tomou conta da sala – até eu ri junto.

Quando meu pai faleceu, eu me lembrei desse dia. Me lembrei que quando a gente cai, a vida não dá tempo para levantar, tomar banho, se arrumar, colocar uma nova roupa e continuar. A vida faz a gente seguir na hora, sem titubear, sem trocar os passos. E, mesmo assim, ainda arranca risadas.

No último mês, caí de novo – quem me dera se fosse de patins –  e me lembrei mais uma vez desse dia. Olhei para o céu, fiz um maneio de cabeça como quem avista de longe um amigo, dei uma piscadinha, e agradeci. Naquele momento, abri mais uma vez a rodinha do meu tênis-patins, limpei a calça, bati as mãos e continuei. Continuo até aqui.

*Paulo observa e fala na mesma proporção. Conversa sobre relacionamentos mais do que a maioria da população. Aquariano com ascendente em Áries, gosta de mudar de ideia e só escreve aquilo que teria coragem de dizer em voz alta — cartas olham, sim, nos olhos (desculpa, Roupa Nova).

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