O que os olhos não vêem

Blog Vida de Adulto
Mônica, no centro da foto e vestida de verde, está no meio de várias mulheres reunidas em ciranda para dividir trechos de vida (Foto: Arquivo pessoal)

*Taciana Collet

— Quer mandar um áudio de despedida pra Mônica? Os médicos não dão esperança mais.

A mensagem chegou e só li duas horas depois. O que dizer pela última vez para uma amiga? Ainda daria tempo? Ela escutaria, mesmo sedada na UTI?

Antes de ser entubada, assim que recebeu o diagnóstico da Covid, ela nos avisou:

— Quero voltar, só não sei se volto.

Depois de várias batalhas vencidas, minha guerreira amiga desta vez desconhecia o inimigo. Pressentiu o perigo, mas decidiu enfrentar, como sempre fez.

Quando conheci a Mônica, há mais de vinte anos, ela já tinha perdido a visão por conta do diabetes.

Nunca me viu, mas talvez tenha sido uma das pessoas que mais enxergou o que se passou comigo nos últimos anos. Só nos aproximamos verdadeiramente quando comecei a ver tudo ao meu redor com outros olhos. Talvez com o mesmo olhar da Mônica, que captava o invisível essencial e sorria pra vida.

No auge de uma crise existencial, depois de dois lutos, reuni trinta mulheres numa ciranda para falar sobre envelhecimento. Mônica foi, ouviu falarmos sobre as angústias com a perda da juventude, e quando chegou a vez de seu depoimento, foi precisa:

— Essa questão não é problema pra mim. A última imagem que tenho minha refletida no espelho é de quase 30 anos atrás. Assim me vejo e me sinto aquela jovenzinha.

A frase nos calou profundamente. Tão óbvio que a gente não enxerga, né Moniquinha? Precisou você pra nos lembrar de que não importa a casca que carregamos, mas o que levamos dentro. A casca da Mônica ficou pesada demais. Pra continuar sua caminhada, foi preciso deixá-la. Tal qual borboleta.

Como me despedir dessa amiga que tanto me ensinou?

Um último áudio no Whatsapp. Era hora do crepúsculo, a hora de recolher da natureza e minha amiga também se recolhia.

Pedi ajuda aos pássaros, que entoavam o canto de despedida da tarde. Gravei o gorjeio, narrei o sol se pondo, agradeci e declamei meu amor.

O áudio pelo celular não chegou a tempo. Mas um passarinho me cantou que palavras jogadas ao infinito pelo coração viajam longe. Juntei todo amor que há em mim para arremessar ao Cosmo essa primeira-última palavra: aDeus.

Mônica não voltou pra nós. Sem a casca, partiu para uma vôo mais alto. Voa, borboleta!

A homenagem à Mônica não é só da Taciana. O Vida de Adulto também faz seu último agradecimento. Mônica escreveu aqui, em junho do ano passado, um texto contando um pouco do que eram seus “dias de reclusão” nas várias internações hospitalares que enfrentou. Mônica ficou diabética aos 11 anos, perdeu a visão aos 25 e nos deixa aos 50. Escreveu dois livros sobre sua história com o diabetes. No último, contava sobre seu “divórcio” com a doença depois de um transplante duplo, de rim e pâncreas. Mônica não é mais um número nas estatísticas do painel do Coronavírus. É a filha da Virgínia e do Alberto, a irmã da Raquel, da Simone e do Léo e nossa eterna amiga. À família Messias, deixamos nosso respeito e profunda admiração. Terminamos nossa homenagem com a frase com a qual Mônica se apresentou a nós: “Sabores, sons, toques, sensações diversas me fazem feliz. Imagens? Não necessariamente. Vejo felicidade na simplicidade das coisas e pessoas, enfim, nos momentos. Eu me chamo Mônica.”


*@tacianacollet é uma das fundadoras do Vida de Adulto, escreve às sextas-feiras, duas vezes por mês.

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