A mágoa que me alimenta
Em minhas andanças internas, em que me pergunto a todo instante de que matéria sou feita e o que faz com que eu seja o que/quem sou, fui detida por uma questão desconcertante: qual é a matéria de minha feminilidade?
Por um tempo, me impus o silêncio porque a pergunta exigia muito mais do que eu poderia dar por longas e longas semanas. Não me sobrava tempo pra pensar nessa futilidade, coisa de mulherzinha que não tem mais o que fazer. Depois me neguei a escrever sobre qualquer coisa que não envolvesse Bourdieus, Butlers, Foucaults e Deleuzes – estes impressionantes pensadores que escapam da superfície. Fugi, fugi, fugi porque a resposta não estava nas páginas perfeitamente racionalizadas, com explicações complexas e derivadas de um percurso histórico consciente, amplo, com os devidos pormenores necessários às boas explicações.
A terapeuta sugeriu uma aproximação, ainda que leve, ao taoísmo e o tal ying e yang. Achei uma bobagem.
Pensei em perguntar às amigas, mas elas são muito delicadas para me dar respostas honestas demais – e outras, não tão amigas, poderiam aproveitar o ensejo para destilar o veneno daquele dualismo insensível: se nunca mais arrumou ninguém, deve andar com mulher. Só pode ser.
Recorri aos fatos. Sim, me interesso pouquíssimo pelos homens e nada pelas mulheres. Depois do divórcio, nunca mais tive um relacionamento de fato. Eu achava que a mágoa me consumia, mas acho que é o contrário. Como em um poema de Rupi Kaur, em livro presenteado por uma comadre querida:
“para se curar
você há de
chegar à raiz
da mágoa
e abraçá-la até o talo.”
Eu como a minha mágoa todo dia, como vaca ruminante. Isso é uma coisa feia de se dizer, mas entendi que a escrita curativa deve ser sincera até doer, impressionar, estarrecer, escandalizar. “Poxa, ela sempre tão doce e generosa, não vê que comer mágoa todos os dias é o mesmo que beber copos e copos de fel?”. Eu me alimento do que bem entender, uso os ingredientes que eu quiser.
Eu inverti a lógica. A mágoa não me destrói, sou eu que a uso para fazer regenerar em mim aquilo que não poderia vir de qualquer outro lugar aí fora. O metabolismo digestivo do qual me alimento produz ácidos esquisitos que viram adubo. Pra quê?
Pra me fazer essa terra fértil. Do lugar de onde vim, a terra tornou-se valiosa depois de ser corrigida com todas as artificialidades químicas imaginadas até gerar lavouras imensas. Também foi assim comigo, e ainda é. Me corrigi com Rivotril, Reconter, excesso de vinho, mudança para o outro lado do mundo, viagens aos polos norte e sul, crítica social, leituras acadêmicas, trabalho, trabalho, trabalho. Minha safra é numerosa.
A terra em que me transformei combinou-se com a semente original, a dignidade que aprendi com papai e mamãe, mas também com os livros que me foram permitidos ler sem qualquer censura familiar. Grão que não precisou morrer pra germinar (lembrando a letra de Gil). Fiz dessa semente o motor que me energiza para comer a tal da mágoa, devorando-a com certo furor, intercalado com autopiedade, mas só no ponto para empunhar minha valentia.
Meu feminino é valente. E ele brotou do meu útero na forma de uma criança que sempre berrou, até que aprendeu a cerrar os punhos num trabalho de reorganização interna em horas de tristeza e raiva.
Faço mulheres fortes ao meu redor. Não que eu possa fabricar esse tipo de gente, mas resolvi me dar a condescendência de afirmar, aqui, tão publicamente, que transpareço força. É difícil considerar que essa transparência às vezes depende do reconhecimento alheio – o que raramente acontece porque, afinal, o mundo não é gentil. Mas quem pode se nutrir disso quando a água que cai na sua plantação é perfumada, enquanto a do vizinho sofre de secura?
Já cheguei num ponto de juntar relíquias. O pano que me veste já gastou na altura dos joelhos e dos cotovelos. Terra meio esgarçada, mas fértil porque sou do tipo que ora e remói, derramando-se no chão, juntando as mãos, olhando para o céu. Minha feminilidade está também nessa entrega ao sobrenatural que perfuma minha chuva.
Eu sou uma mulher que exala.
Sou @patricia_g_gil, em permanente busca de mim. Mãe de Clara, filha de Sonia e Ari, irmã de Marcelo.