Chove aqui dentro
Hoje cedo eu não queria sair de casa. Queria ficar quieta, sentindo dentro de mim a chuva lá de fora. O céu cinza completamente fechado, as árvores com copas cheias intensamente verdes, a grama, a terra, o asfalto, tudo molhado, até os motoristas insensíveis que não lembram que mesmo em Brasília há pedestres…
Na minha vida adulta, sempre praguejei: merda de chuva que molha meus pés, deixa meus cabelos mais leoninos e me atrapalha de sair.
Mas nesta temporada a sensação é de aconchego, nostalgia.
Voltei à infância. Aqueles anos na casa de vila, eu e meus irmãos embaixo das cobertas na cama dos nossos pais, um filme na tevê, pipoca e café com “leite de moça”.
Se a chuva começava de repente, minha mãe gritava: corre, tira a roupa do varal. Era um desespero. E havia liberdade, como no dia em que nadamos na enxurrada. Tudo era então permitido. Daí que hoje cedo eu não queria sair de casa. Queria acender vela, tomar chá, ler livro.
Para estes dias molhados, duas sugestões de leitura, dois portugueses: o bobinho e inacabado Um Dia de Chuva, de Eça de Queiroz, e o belíssimo e triste A Desumanização, de Valter Hugo Mãe. Deste último, uma frase: “Um inverno nunca seria tão rigoroso se não fosse modo de Deus mandar que as pessoas ficassem recolhidas”.
Aqui, as chuvas tropicais fazem as vezes de inverno rigoroso. Em breve viverei dias de sol, mas por agora quero me recolher.
*@noelinobre, brasiliense de raízes bandeirantes e amazônicas. Adepta do sonho, amante das palavras.