O amor no coração e uma mente sem lembranças
*Mariana Londres
Ela teve a família destroçada por mortes e separações. Juntou os cacos, pegou o dinheiro do divórcio, a mãe, e se mudou para Curitiba, onde estava o filho mais velho. Por anos, foi o elo que uniu aquela família separada, com núcleos em três cidades.
Até ela, após os 80 anos, ser atingida pela senilidade. A memória foi sendo dragada pela erosão, e, junto com ela, parte das conexões. Os presentes, as visitas, as primeiras ligações no dia do aniversário acabaram pra todos nós.
O que não imaginávamos era que, dez anos depois do silêncio, ela ainda conseguiria reunir esses três núcleos familiares e receber telefonemas de três grandes amigas no aniversário de 90 anos. Um sinal claro de que soube, sim, tecer laços tão duradouras que se mantiveram quando, de uma certa forma, ela já tinha ido embora.
A minha avó se divide na de antes do fim da memória, com a de depois. Ela perdeu o vigor, a dedicação, mas também a tensão, a depressão, as angústias, a insônia e as doses diárias de Roupinol. Ficou feliz e serena, dentro de um corpo sadio, com uma mente vazia. Incapaz de se conectar como antes, recebe de volta o que distribuiu por décadas.
“Não se pode ter tudo, viver até os 90 com saúde e ainda memória, não é mesmo?”, diz a minha prima, ao sentarmos do lado da nossa avó explicando repetidamente quem somos, o que fazemos, onde moramos e quem são nossos filhos.
Concordamos que outro destino – uma mente sã aprisionada em um corpo doente – seria pior para ela e para todos nós.
Até vovó dizer: “Como vocês são lindas!” E todas as nossas conversas terminam assim, com ela surpresa ao descobrir, a cada minuto, que está rodeada de amor.
*Mariana Londres Pinha escreve desde criança como terapia. Nunca pensou em publicar nada pessoal, até encontrar uma editora insistente e apaixonada. Além de textos, produz relações de longo prazo e é especialista em administrar distâncias e saudades.