A morte é uma cicatriz


Foto: Arquivo pessoal

*Tainá Falcão

O câncer de fígado avançado fazia meu pai delirar a ponto de, certa vez, me pedir um “quarto” para acomodar as costas. Estávamos a sós no hospital há algumas horas e papai se mostrava mais inquieto do que de costume. Sentava-se à beira da cama e se deitava em intervalos de poucos minutos.

Depois de me recitar um poema inventado na hora, que dizia algo do tipo: “Suas cores são as mais bonitas!”, papai me fez uma promessa: “Quando eu tiver alta, vamos sair por aí numa Harley Davidson!”.

Conversei com a médica naquele dia e entendi que a situação era ainda pior do que imaginava. O câncer entrara em metástase sem remissão. “Mas não há nada que possamos fazer?”, perguntei. Ela só balançou a cabeça em negativa.

Naquela época, uma promoção no trabalho, em outra cidade, me fazia esquecer que a vida era finita. Meu pai morreu em um sábado de madrugada. Depois que recebi a notícia entendi porque havia chorado tanto em O Homem do Futuro, sobre um cara que volta ao passado para conquistar a mulher amada.

Cheguei para o velório depois de mais de duas horas de vôo. Tinha um encontro com hora e data marcada, indesejável, mas inevitável. Meu pai me esperava imóvel, gelado, rígido, mudo, morto.

Não me preparei para isso e tive receio da minha reação. Existe uma pressão social para que sejamos tristes e pesarosos em velórios. Não apenas para que sintamos, mas que demonstremos. “Não sei fingir”, pensei. Não que estivesse feliz, claro, meu pai havia morrido, mas a ficha não cai na hora, demora.

Vi muita gente chorar de soluçar, depois gargalhar e perder o fôlego. Meu pai era bom em fazer sorrir, gostava de contar piadas (eu ouvia escondida às inapropriadas e as repassava em segredo) e adorava pregar peça nos amigos. Uma vez alertou a namoradinha de um deles: “cuidado que esse aí mistura bebida com tarja preta, fica agressivo, um perigo!”. A mulher sumiu, o amigo ficou com a história divertida para contar no velório.

Só entendi que nunca mais veria meu pai com a ligação de aniversário que não recebi, quando comecei a conjugar os verbos no passado para me referir a ele, quando chorei no especial de fim de ano do Roberto Carlos.

Fiz uma cirurgia na coluna para me livrar de uma escoliose, bem antes disso tudo. A cicatriz ainda formiga de vez em quando e às vezes coça bastante. Acho que com a morte é mais ou menos por aí. A morte abre uma ferida dentro da gente, um corte grande e profundo que cicatriza, mas não deixa de doer. Meu pai é minha cicatriz de saudade no peito.

*Tainá Falcão é jornalista de sangue nordestino, alma brasiliense e coração paulistano. Autora do blog marialindamaria.com e do perfil @contosdemarialinda.

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