Só pra constar
*Tom Fernandes
— Boa noite! Tudo bem? Ah, esse vinho é só pra constar, viu?
— Só pra constar, a última taça de um bom vinho é a mais difícil de tomar, viu?
Ninguém quer que ele acabe, mas vinho quente é um desperdício. Noite adentro seguem a goles pequenos, menores que os do brinde em que desejaram felicidades mútuas nos novos caminhos dali em diante, goles mais ávidos que os do primeiro sexo, anos atrás. Horas depois, tudo é melancólica vontade de que a noite não termine. Dois pratos sujos e três garrafas vazias jazem meio insolentes de preguiça. Daqui a pouco, quando o sol raiar, não haverá mais bom dia, não haverá mais quer café, só terá havido o último vai com Deus.
— Fecha os olhos e imagina que seja o último doce que você vai colocar na boca em sua vida.
Doce de leite moreno, bem batido, feito só com creme de leite fresco de fazenda, sem pasteurizar, sem adoçar em demasia, é como sexo bem feito, gosto de amor e explosões de selvageria. Como a última noite de um bom relacionamento, enche a boca com o mais amargo doce. Ninguém come um quilo de doce de uma vez, mas na primeira colherada todos juram ser possível. Todos querem que seja possível viver de amor, de comer doce. A última noite com quem se ama é uma orgia gastronômica regrada, uma colher de cada prato, um gole de cada sabor. E nada mais. E nunca mais.
Há noites e noites para quem ousou amar e agora vê o amor partindo. Dores e sabores. Poesia bem-feita. Rimas forçadas. Há o sono pós-foda em que julgam ter visto Deus em sua glória. A insônia do desencontro. Há corpos molhados de orgástico suor. Rostos marejados de lágrimas. Há a última noite, decididamente a da despedida. A noite em que tudo conta, tudo é detalhe, tudo marca. Mesmo o vinho barato cujos últimos goles são sorvidos como respiros antes do mergulho só de ida.
Enquanto caminha pela calçada já a salvo de olhares que julguem suas lágrimas salgadas, procurando o telefone para chamar um carro, acha no bolso um pedaço de papel rabiscado: Só pra constar, nunca vou te esquecer.
*Tom Fernandes é bisneto torto de uma amiga de infância da vizinha de Cora Coralina. Daí vem seu interesse pelas artes, especialmente a literatura. Enquanto não publica seu primeiro livro como escritor, trabalha nos livros dos outros há mais de duas décadas. Amante da boa mesa e do bom copo, vive às turras com o gordo que há em si. É pai do Benjamim e acredita que o amor não é docinho.
Eu não bebo vinho, nem quase nada que vá álcool; não me apetece.
Adoro doce de leite — deleite!
Gostei do texto e lembrei da música do João Caetano – Triste Papel.
Só pra constar…
Obrigada por participar do Vida de Adulto, Rodrigo!!