Bagunça

Foto: Arquivo pessoal

*Isabelle Borges
 
É mesmo assim que a bagunça começa. Você tira uma coisa do lugar, daí vem outra e movimentos imperceptíveis ganham vida própria. A rua é feita dessas bagunças que não se sabe onde começa. Sempre me parece que as pessoas estão fora do lugar, que elas não deveriam estar onde estão, nem fazendo as coisas que estão fazendo. Eu claramente sou uma delas. Nem mesmo sei se meus órgãos estão no lugar certo.

Tenho sentido uma dor que acho que é dos rins, mas já me disseram que os rins não ficam ali.

Então que lugar é esse aqui? Não sei, mas não é rim. É isso, tenho que me conformar que não tenho domínio nenhum sobre a geografia dos meus órgãos e muito menos das minhas dores.

Nunca vejo televisão, nem entro no site de notícias, ao certo porque não queira pensar que sempre tudo está a morrer. Eu devo mesmo ser alienada e viver no mundo sem saber quase nada que se passa nele. Com certeza é isso que acontece.

Mas pelo menos eu sei que o pintor que veio aqui em casa outro dia teme que as pessoas não o amem. Deve ter falado isso na hora que eu perguntei qual era seu maior medo. Agora é do vírus que se fala de medo. É bem verdade que os maiores medos sempre vêm daquilo que a gente não consegue ver.

Cheguei a ouvir que o mundo está acabando.

Sempre pensei que o fim do mundo seria com coisas pegando fogo, ruínas, o céu ainda cinza. É de se espantar que diriam que o fim do mundo aconteceria com céu azul e em silêncio. Acho graça acreditar que o mundo acabaria só porque a gente deixaria de viver nele.

Tenho lavado mais as mãos. Me dei conta das tantas coisas que chegam pelos meus dedos e eu sequer sinto a temperatura. Se não fosse um vírus para me ensinar sobre mim mesma. Estou aqui com a cara na minha insignificância, lembrando das vezes que disse “preciso fazer isso para salvar o mundo”.

Mal sabia que salvar o mundo seria de dentro de casa, lavando as mãos.

Eu já devia saber disso, porque boa parte do meu mundo sempre foi salvo dentro de casa, com alguém de mãos limpas sobre meu cabelo, beijando meus olhos. Está tudo uma bagunça. Ao certo sempre esteve. O céu está mesmo bonito hoje. Eu gosto de pensar que o que estou a fazer já é viver. 


*@isabelle_borgesss é escritora, educadora criativa e artista. É autora dos livros “Bilica Chorona”, “Amores Virados pra cá”, “Meu mundo deitado na grama” (no prelo) e da peça de teatro e curta metragem “Enquanto Estamos Juntos”. É fundadora e diretora da POAMA – Escola de Memórias, uma escola itinerante de despertar humano e criativo a partir da escrita.

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