Como é que cola cristal?

Renata Varandas escreve sobre a bomboniere que ganho da mãe
Foto: Depositphotos

*Renata Varandas

Minha mãe, logo que saí de casa, aos 23 anos, me deu uma bomboniere de cristal pra eu levar comigo pra casa nova, pra vida, pra eternidade.

Desde que meu irmão e eu éramos pequenos, lembro-me daquela bomboniere cuidadosamente posicionada enfeitando a sala. Sempre tinha chocolate lá. A gente, mesmo criança, podia pegar, não havia impedimento, mas antes de abri-la, já descia do além uma voz: “Cuidado com a bomboniere”.

Quando minha mãe me deu, eu me perguntei se saberia guardá-la com tamanho zelo, tratá-la com tanto cuidado quanto foi tratada a vida toda. Passei uma década com ela num pedestal, praticamente. Há dois anos, voltei pra casa da minha mãe enquanto a minha reformava.

Levei junto a bomboniere, em perfeito estado, e devolvi: “Mãe, não posso mais ficar. Minha responsabilidade afetiva com ela é tamanha, que eu tenho medo de machucá-la, seja só uma lasquinha imperceptível aos olhos dos comuns, (mas que gritaria aos meus todas às vezes que a visse,) seja por motivo pior: quebrá-la ao meio, sem direito à reparações.

Penso que as bombonieres são como pessoas especiais.

Ou você faz como minha mãe, se dedica e cuida porque sabe que uma vez quebrada, não existe reparo: apenas vassoura, uns cortes no dedo, pá, lixo e tristeza, ou parte para olhar as vitrines, a internet, as redes sociais para tentar, na ilusão, achar uma igual e substituir a que não cuidamos por uma nova.

A antiga bomboniere, a gente até tenta recuperar, mas fica mal e porcamente colada. Nunca mais será a mesma. No fim, verdade é que nada fica igual depois de quebrado. As bombonieres de cristal estão remendadas, as amizades quebradas, a confiança perdida, o amor idealizado. Como é que cola cristal, alguém sabe? Será que é com a mesma cola que remenda as dores da alma?


*@revarandas é jornalista e uma das organizadoras do Podcast Vida de Adulto.

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