O descartável não existe

Rosângela Rezende no Blog Vida de Adulto
Foto: Arquivo pessoal

*Rosângela Rezende

Acordo num sábado qualquer e me vem à mente a imagem feliz do pilão de madeira que no quintal me espera pra ser transformado num lindo vaso de plantas pra minha sala. Passou a noite secando depois de um banho de remédio contra cupins para continuar o processo de deixar de ser algo inútil e descartável para trazer beleza aos olhos de quem consegue ver.

Este pilão antigo saiu de um monturo de lixo jogado à beira de uma rua e que me fez voltar no fim da jornada pra recolhê-lo. Com minha filha no carro falando: ‘Mas, mãe, você vai pegar do lixo?’ E ao ver a peça, mudando o discurso: ‘Como é bonito!, Como as pessoas jogam fora algo assim?’

E é comigo ainda sob as cobertas, que consigo despertar do lixo da memória a lembrança nítida da menininha magricela e de longos cabelos desgrenhados que amava fuçar as lixeiras da vizinhança. Minha mãe não permitia este libertário divertimento, mas o meu Eu criança não se intimidava e burlava as regras quando os olhares não estavam tão atentos.

E era mágico abrir uma lixeira: não sentia nojo, asco ou medo. Me invadia uma curiosidade extrema com o que dali surgiria e em tudo eu via magia. Aqueles olhos infantis não conseguiam ver ali os restos descartados por uma sociedade seduzida pelo descartável.

Tive a sorte de uma infância ainda no tempo em que as lixeiras não representavam perigo para os fuçadores de plantão. Nada de seringas, garrafas sempre retornáveis, quase nenhum resto de alimento – pouco se consumia de comida industrializada.

Eu nunca mais tinha me lembrado dessa menina seduzida pela lixeira alheia. Da imagem do pilão resgatado, se encadeou a lembrança esquecida da figurinha cheia de energia pra inventar maravilhas daquilo que outros olhos não viam mais nada.

Agora, o pilão que um dia produziu paçoca vai pra sala, ainda mais lindo quando estiver preenchido por espadas de São Jorge. Assim como o carrinho de mão, coxo e sem rodinha, resgatado de uma caçamba de construção, que virou um berçário de cactos para o jardim.

O descartável não existe. Em tudo há beleza, há poesia, há o que descobrir. É só resgatar. E a criança que existe em cada um é mestre nesta arte.


*@rorezende_ é goiana do pé rachado. Amante das plantas e dos animais, é mãe de 4 filhas adotivas, caninas e felinas, e de um casal de adolescentes. É lixóloga por paixão e jornalista por curiosidade. Sagitariana, tem asas abertas prontas para qualquer instigante ventania.

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