Nós de uma vida
A porta da frente está trancada, mas a claridade atravessa as vidraças da minha casa e chega até o aparador, onde uma fileira de porta-retratos conta uma longa história. Na cristaleira, estão arrumadas as xícaras de porcelana japonesa com detalhes filetados a ouro. Sobre a mesa de oito lugares, o caminho de organza branca tem uma mancha amarelada em volta do vaso chinês.
Almofadas de crochê ocupam os lugares do sofá. Na estante, os livros têm marcadores em páginas abandonadas, e a bomboniere guarda pequena fortuna em moedas. No corredor há pinturas desbotadas da natureza morta e uma passadeira indiana enrugada. O armário do meu quarto esconde vestidos acinturados e saltos altos. Na gaveta da cômoda há um emaranhado de correntes finas e uma caixa que abriga cartas de amor e sonhos de menina.
Planejo trocar as fotografias, as flores, os quadros, o caminho de mesa, a capa das almofadas. Bater um bolo e pôr a mesa para o chá, embora algumas xícaras fiquem sobrando, porque minhas melhores amigas já se foram. Vou retomar as leituras e agradar o lixeiro com as moedas para que ele leve mais lixo do que o habitual.
Quero doar vestidos e saltos, e entregar o emaranhado de metal para que minhas netas desatem os nós de uma vida; mas preciso rasgar as cartas para que não me vejam despida.
Sim, eu tenho planos para quando eu voltar, mas não há ninguém tão perto para ouvi-los e tampouco eu posso anotá-los, então tomo notas mentais, enquanto observo o relógio de parede com grandes números romanos e ouço o repetitivo bipe das máquinas.
Sim, eu tenho planos para… se eu ainda puder voltar para casa.
*Sou @simone_lopesmattos, servidora pública da área da saúde. Em 2020 iniciei na escrita de contos e essa prática tem aliviado meus dias.