Vida que tratora
Quando eu era criança, tinha muita pena da humanidade no dia em que eu morresse. Explico: tinha certeza de que quando eu morresse, o mundo ia acabar junto, mais ou menos naquela lógica do meteoro que atingiu a terra e matou todos os dinossauros de uma vez.
Assim seria minha morte: meteórica, explosiva, devastora. Coitadas daquelas pessoas, cheias de planos, sempre atrasadas, que tomavam café da manhã enquanto dirigiam… Todas iam ser paradas junto comigo.
Na época em que pensava que eu destruiria a terra, eu tinha uns 5, 6 anos e a gente sempre pegava um pouco de trânsito na ida para a escola. Eu imaginava aquelas ruas completamente vazias na minha ausência, afinal o mundo acabaria junto comigo. Que triste fim pra vocês.
Triste mesmo foi quando comecei a desconfiar que o mundo não acaba quando você morre. O Cazuza, que era famoso, morreu.
Era um fim de semana, eu lembro, mas segunda-feira lá ia eu para a escola do mesmo jeito. Tinha trânsito do mesmo jeito. Será que o Cazuza, que sobrevivia sem um arranhão, também achava que o mundo acabaria quando ele morresse?
Mais triste ainda é você ter certeza de que o mundo não só não acaba, como continua do mesmo jeitinho quando você morre. Aí você passa entender aquela velha e egoísta frase “vida que segue”.
Muito, mas muito mais triste é quando você percebe que a vida não só segue, como ela passa por cima de quem foi como um trator. Tratora a história, as memórias, a presença. Não sobra nada. Às vezes, o mundo nem sente saudade. Não dá nem tempo.
Vida que segue dolorida só para quem está ali junto, dividindo, comendo do mesmo pão. Aí dói, dói muito, mas pro restante do mundo, vida que tratora e não sobra nada.
Amanhã, as pessoas vão continuar atrasadas, o trânsito vai continuar cheio, os colegas vão continuar dando gargalhadas na copa enquanto tomam café, o jornal vai continuar entrando no ar.
O Cazuza sabia que o mundo não acaba quando a gente morre porque ele disse uma vez que o tempo não para. Acho que fui eu que não prestei atenção porque eu ainda era criança e achava que cada pessoa era muito especial na vida.
*@revarandas é jornalista e uma das organizadoras do Podcast Vida de Adulto.