Paragens

Tom Ferndes escreve sobre vida e amor no texto "Paragens"
Foto: Arquivo pessoal

*Tom Fernandes

— Senhor, boa noite. Não sei quanto dura minha caminhada, nem as noites que passarei por aqui.

— Entre, senhora. Passe a noite. Coma do meu prato. Beba do meu copo. Hoje é o que há. Sobre futuro amanhã falamos.

Há quem construa catedrais ao amor. Quem, como o poeta, perambule por templos claros e risonhos ao ressoar do nume de amor. Quem adore o amor e a ele se devote. Mas o amor, tal ídolo, se quebra e fere o fiel nos cacos de seus próprios sonhos.

— Bom dia, senhor. Agradeço a hospedagem. Falei com o travesseiro toda a noite e ainda tenho caminho pela frente. Não farei morada aqui.

— Vá em paz, senhora. Antes tome do café feito com carinho e bons grãos. No seu embornal guardei um queijo e uma rapadura. Há de ser sustento para o dia mau.

Há quem construa castelos para o amor.

Quem, como Percival, construa fortaleza a protegê-lo de tudo e de todos; por fim, de si mesmo, encastelando o amor e fazendo dele seu feudo e posse. Mas o amor como roca encastelada se amaldiçoa e fere de morte em vida quem por distração a tocar.

— Boa tarde, senhor. Venho de longe e já há horas aprecio a paisagem de sua vereda. Importa-se de que fique além da noite tratada?

— Boa tarde, senhora. Enquanto houver alimento e água fresca, fique. Ainda vinha longe e ouvi seu canto. Quero ouvi-la por mais um tempo.

Há, por fim, quem construa estalagem para o amor. Quem, como os pais do Rabi, encontre na manjedoura o lugar propício para vê-lo nascer. Quem se encante nos dias tórridos e pranteie nas noites lacrimosas que o acompanham. Como planta ao abrigo do sol, sem o grilhão da redoma, o amor cresce e dá frutos e eles permanecem conforme sua espécie.

— Senhor Amor, é hora de partir. Deixe as chaves e venha comigo que hoje volta a ser viajante. Há caixa que queira levar?

— Sim, eu sei, Senhora Vida. Vou só agradecer a cada viajante que cruzou meu caminho. Quem ficou uma noite, quem passou direto o caminho, quem se demorou e hoje me vê partir. Não há caixas, apenas afetos e contentamento.

Sempre há uma nova paragem, uma nova partida, um eterno caminhar. E até um poeta ruim de rima sabe que é verdade: só quem entendeu o caminho o saberá trilhar.


*@tomfernandes é bisneto torto de uma amiga de infância da vizinha de Cora Coralina. Daí vem seu interesse pelas artes, especialmente a literatura. Enquanto não publica seu primeiro livro como escritor, trabalha nos livros dos outros há mais de duas décadas. Amante da boa mesa e do bom copo, vive às turras com o gordo que há em si. É pai do Benjamim e acredita que o amor não é docinho.

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