O João conseguiu o tratamento, mas quem ficou bom fui eu!

Jairo Lopes conta a história do João, que nasceu com os pés tortos
Foto: Arquivo pessoal

*Jairo Lopes

Minha cabeça estava uma imensa bagunça. Aliás, “bagunça” é um eufemismo para o que se tratava de uma verdadeira desordem. E não era só resultado do micróbio maldito que levou os afetos de tantas pessoas ou que matou tantas outras de fome e que também chegou bem perto de mim.

Era consequência da maldade de dois demônios que me tiraram um pouco da graça de viver quando, durante um assalto, espancaram o meu velho até quebrarem as coronhas de seus revólveres. Era o produto do ódio ao ver que, mesmo com o mundo desmoronando, as pessoas continuam a cultivar o egoísmo.

O livro de autoajuda não ajudou, a meditação fez o seu melhor, mas também falhou. Restava-me a espiritualidade, mas não se tratava de Ave Marias rezadas com fervor. Pedi um norte para sentir que valia a pena prosseguir.

E como todas as respostas enviadas pelo Imaterial, de surpresa veio o João, o rapaz da limpeza aqui da firma. Ele mora a 82 quilômetros de distância do trabalho. Sai de casa as três e meia da manhã para estar no batente às sete. E nunca atrasou. E sabe o que mais?

O João nasceu com os pés tortos. Poderia estar encostado, mas preferiu desafiar a vida dura.

Ele já havia se conformado com a deficiência, mas um daqueles médicos iluminados criou uma cura. O João não sabia. Eu, abelhudo, vi a reportagem por acaso e fui correndo contar para ele. Uma colega insistiu e conseguiu uma consulta. Desde então os olhos do rapaz trazem um brilho tão raro de se ver nestes tempos. Se Deus quiser, logo as botas ortopédicas serão somente lembranças.

Eu olho para o moço de pés tortos, mas que não deixou de sorrir um dia sequer, mesmo tendo crescido sem poder correr como as outras crianças, e o coração, ao mesmo tempo que aquece, faz com que eu sinta uma ponta de vergonha pela minha frouxidão.

Não que eu renegue a minha fragilidade, mas é que fica feio acreditar que a vida não presta quando vejo o brilho nos olhos do João. Refleti e tive a certeza de que precisava era agradecer pelos meus problemas, meros dissabores comparados à tantas tormentas alheias.

Eu sei, é um clichê dos maiores. Mas foi o que me salvou. Obrigado, João: você conseguiu o tratamento, mas quem ficou bom fui eu.


*@jlopes1975 é um cara que adora histórias de amor e torce por finais felizes. Ama fotografia, cachorros, todos os cachorros, pôr do sol, música, doce de padaria, estrada, cozinha e, no restante do tempo, trabalha e vive as alegrias e dilemas da vida real.

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