Toc, toc, com licença?

Nane de Sousa conta que, depois do WhatsApp, recebe mais ligações de WhatsApp do que de amigos
Foto: Divulgação

*Nane de Sousa

Desde que surgiu o WhatsApp e outros aplicativos de conversas pessoais, a cada dez ligações telefônicas que ainda recebo por dia oito são de telemarketing. Nem minha mãe me liga mais. Inclusive no meu aniversário, que até bem pouco tempo era data de receber telefonemas (palavrinha meio fora de moda, né?) de amigos de perto e de longe.

Muita gente nem se lembra que o telefone é uma das funções dos smartphones. Realmente parece que as ligações diretas estão em desuso.

Dia desses, porém, fui surpreendida por uma ligação da Taciana – pessoa com quem eu só havia conversado uma vez por whatsapp. Ao receber um texto meu, como colaboração para o Vida de Adulto, ela disse que resolveu arriscar. Arriscar? Isso.

– Afinal, ligar para alguém hoje em dia é como se a gente invadisse a sua casa [gargalhadas].

E não é que, estranhamente, a impressão é exatamente essa?! A gente fica até intimidado em ouvir voz amiga apenas interessada em emitir impressões, trocar ideias, dizer um “olá, que bom pensarmos parecido…”

Parece besteira, mas em tempos tão sombrios essas vozes empáticas evocadas em ligações diretas fazem uma falta danada. E são capazes de contribuir para aquelas curas diárias promovidas por pequenos gestos de afeto e atenção.

Eu vivo passando vontade de ligar para novos amigos. Na dúvida, eu me reprimo porque entendo que nos dias que seguem essa atitude parece íntima demais.

Paradoxalmente, os desconhecidos trabalhadores do telemarketing não titubeiam e ligam mesmo antes das nove da manhã e após oito da noite – sem cerimônias!

Por que, então, a gente não se arrisca mais? Num ato oitentista, sugiro que você digite aquele número, aquele código pessoal, que levará diretamente à pessoa com quem deseja falar – até porque essa é praticamente a certeza que o aparelho celular nos dá. A certeza da individualidade da voz do outro lado da “linha”.

Vai dar um friozinho na barriga e uma certa insegurança de quem não pediu licença pra entrar. Mas a voz intimista e dirigida – sem os filtros e vícios de um áudio de WhatsApp – vai compensar o inicial constrangimento. Coisa de gente. Vai entender!


*@nanedesousa é jornalista, especialista em Linguagem, Cultura e Mídia pela Unesp, e integra as antologias Tempo Insólito (Ed. Scortecci , 2018), O vazio não está nem quando é silêncio (Ed. Mireveja, 2020) e Quarentena (Ed. Chiado Brooks, 2020)

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