Receituário

Foto: Pixabay

Renata Varandas*

Tem certas coisas na vida que não se falam, não se questionam, mas esses dias uma amiga quebrou essa regra. Me fez uma pergunta extremamente delicada: o que você fez nos últimos anos? Parei, pensei e entrei em pânico: “eu não me lembro”, respondi. Será que eu vegetei nos últimos anos e ninguém me contou? Será que eu não me contei?

Nesse período o qual ela se referia, acho que o mundo ao meu redor girava, mas eu permanecia em coma, fechada no quartinho de um relacionamento difícil. Respirava com a ajuda de aparelhos. Por muitas vezes, nem respirava. Outras, sufocava.

O que será que aconteceu com a minha família neste meu momento inerte? Será que alguém precisou de mim neste período? E meus amigos? Como compreenderam esse tempo todo de ausência? Meu Deus, e como consegui trabalhar?

O que houve ao meu redor, hoje, tenho vagas lembranças, uma colcha de retalhos na memória. Tudo sem conexão. Apenas fragmentos. Flashes doloridos. Desconexos. Me culpo: Como pude me deixar vencer assim? Por que não lutei por mim? Por que não gritei por ajuda? Me consolo: porque eu não tinha forças. Era paciente em estágio terminal.

Desenganada, fui para a terapia – intensiva – e em frente ao psicólogo, tive o diagnóstico mais duro que um paciente poderia ter: “do que você gosta? O que te faz verdadeiramente feliz?” Silêncio. Não houve resposta. Nem sequer uma tentativa de suspiro. Eu não sabia responder.

Estava diagnosticado meu problema: síndrome da autodesconstrução aguda com o intuito de se encaixar nas expectativas do outro.

Para as dores da alma, foram injeções diárias de amor-próprio na veia. Doses de coragem em cápsulas para aliviar um coração comprimido também foram receitadas, além dos habituais anticoagulante e antiplaquetário, esses dois últimos, para curar doenças mais simples: as físicas.

Ao longo do tratamento foram inúmeras recaídas. Era sempre preciso aumentar a dose. Recebi alta depois de três anos, mas não posso abusar. Sou uma paciente em constante estado de observação. A medicação – amor-próprio e coragem – continua, cada vez mais forte, essa é a recomendação médica.

Quem sabe do histórico da enfermidade, muitas vezes me pergunta: até quando você vai ter que tomar esses remédios? E eu respondo, cheia de expectativas: pra sempre.

*Renata Varandas é jornalista e descobriu que nem todo cuidado é amor.

 

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