Viver não é relatável

Enio Vieira no Blog Vida de Adulto
Foto: @thisispattismith

*Enio Vieira

E no meio de propagandas, festas e memes do Instagram, surge a foto inesperada. Pérola que sai do lixo virtual. A imagem mostra as pontas dos dedos de uma mão e anotações a lápis num caderno. Na mesa, estão o livro com as memórias da irmã de um poeta francês do século XIX.

Surpresa é o outro livro, a edição recente de “The passion according to G.H.” O perfil no Instagram é da cantora e escritora norte-americana Patti Smith. O que ela deve achar do livro das “entranhas” de Clarice Lispector? Seguidores do Brasil deliraram e mandaram emojis nos comentários. Num dia frio de Londres, Patti está fazendo leituras cruzadas da escritora brasileira (nascida na Ucrânia) com as lembranças da família de Rimbaud.

Escrito em 1963 e lançado no ano seguinte, “A paixão segundo G.H.” é o mergulho no silêncio, o primeiro romance de Clarice narrado em primeira pessoa. “Viver não é relatável”, diz a personagem G.H., que certo dia entra no quarto da empregada e começa a devanear. O que pensará Patti Smith, que escreveu dois belíssimos livros de memórias, “Só garotos” e “Linha M”?

Vida irrelatável também disseram os sobreviventes dos campo de concentração na Segunda Guerra Mundial. Algo tão insuportável de ser vivido não tem como ser traduzido em palavras, romances, contos, poesias, teatro.

Clarice foi mestre do sem sentido, que porém faz todo o sentido para os jovens.

Os mais novos entendem mais a autora de “A hora da estrela” e espalham suas palavras pela internet.

O que se espera de uma escritora são relatos íntimos, confissões, diários quase sempre monótonos. Assusta quando elas olham para dentro e depois se viram para o que está de fora. “Eu que escrevia com as entranhas [o interno], hoje escrevo com as pontas dos dedos [o externo]”, disse Clarice, após ser criticada pelos livros estranhos, confusos e precisos do final de sua vida, como o “A via crucis do corpo”.

Clarice cai bem em tempos (internos e externos) que pedem recolhimento.


*@enioavf, jornalista, espera escrever o livro que planeja desde sempre.

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