O assédio pede passagem
É sábado à noite e peço um carro por um aplicativo de transporte. Quando o veículo chega, tento abrir a porta traseira, mas o motorista pede para eu entrar pela frente. Alega que a trava elétrica das outras portas estava estragada, me olha de um jeito estranho e começa a fazer uma série de perguntas: aonde vou, quem me espera, o que farei.
Incomodada com a indiscrição, respondo que vou visitar uma amiga e não falo mais nada. Ao chegar ao destino, ele não destrava a porta e me manda esperar. Gelo de medo. Ele saca um cartão com seu número de celular, coloca em cima da minha perna e, apertando com a mão, diz sem cerimônia:
“Sua boca é uma delícia. É só me ligar, que você não volta sozinha pra casa”.
Chocada, informo que sou jornalista, ciente dos meus direitos e, que se ele não me soltar, vou à Delegacia da Mulher registrar um boletim de ocorrência. Surpreso, pois provavelmente não esperava uma reação, ele destrava a porta e sai em alta velocidade. Desço com as pernas tremendo e o coração disparado.
Meu batom vermelho era muito chamativo? Meu short era curto demais? Enquanto tento buscar uma explicação para o assédio sexual, me dou conta do absurdo: eu era a vítima e não a culpada. Nada que eu vestisse ou usasse justificaria o abuso cometido.
De madrugada, entro num grupo de mulheres que participo e vejo que um dos tópicos é dedicado às queixas de assédio sexual praticado pelos motoristas. A principal razão dada pelas vítimas para não denunciar os abusos é o medo, já que os condutores sabiam onde elas moravam. Quase desisto, mas a revolta fala mais alto.
Faço a denúncia ao aplicativo. Uma atendente me liga, pede detalhes do ocorrido, se desculpa e diz que o condutor será banido. Já é alguma coisa, mas não o suficiente para me livrar do nojo que senti daquele homem. Pior que ser vista apenas como um pedaço de carne, é saber que esse cara acha que me deu a “honra” de ser assediada por ele. A autoestima dos abusadores precisa ser estudada pela ciência. Ser mulher nesse país é um risco, mas não me calo. “Paz sem voz não é paz, é medo”, já dizia a canção.