Descendo do salto


Foto: Giovanna Leal

Já usei tanto salto na vida que precisei machucar o calcanhar no ano passado pra lembrar que sou baixinha. Sete a dez centímetros que não eram meus já tinham sido incorporados ao cálculo da altura. O salto passou a fazer parte de mim como extensão do meu corpo, molde dos meus pés, sem descanso e nem folga, sete dias por semana. No trabalho, chegava a andar maratona com eles no intervalo de um mês. Me sentia pelada sem salto. Mal arrumada, descalçada.

E não adiantava só ser alto, o salto tinha de ser agulha. Se eu chegasse ao trabalho com a única rasteirinha do guarda-roupa, perguntavam se estava tudo bem comigo. Certeza de que eu estava sem coragem pra enfrentar o dia. Me equilibrei nos saltos durante muito tempo para tentar crescer e me impor. Empoderada nas alturas.

Continuo achando que o problema não está no salto. Estava no poder que eu dava pra eles. E vai muito além do que um provável complexo de baixinha. Aos poucos, estou conseguindo me desmontar. Mas não dá pra trocar uma gaveta de scarpin de uma hora pra outra. Estão sendo substituídos com o desgaste do tempo.

Descer do salto é hoje pra mim um movimento simples de reforço da minha liberdade. Desço do salto para olhar de igual pra igual, olho no olho. Desço do salto pra comprovar que a elegância está vestida nas palavras. Descer do salto para um caminhar firme com os pés no chão. Descer pra descobrir que meu poder não está nem no salto, nem na fenda, nem no corpo, nem jogado no colo do outro.

O poder não está fora, é concedido por mim mesma. Me empodero de vez e de fato quando faço algo que ninguém me tira. Poderosa força. E, quando entendo isso, não mais me importa como esteja calçada. Mas confesso que meus pés agradeceram o poder libertador que venho encontrando nas sapatilhas.

Por dias mais rasteiros.

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