Quer calçar minhas sandálias?
Minhas roupas não me vestem mais, meus sapatos parecem ter um número a menos. Já não caibo apenas na imagem refletida no espelho. Os lugares ficaram apertados, sem espaço suficiente pra tudo o que eu quero ser. Nem todo mundo entende o que está se passando comigo. Às vezes, nem eu. Dia desses, ouvi em tom de crítica:
- Você mudou, não é mais a mesma.
Você está certa, não sou mais aquela. Nem a dez, nem a de vinte, nem a de trinta anos atrás. Mudei. Nunca foi do meu feitio ficar com a mesma cara. Sempre gostei de ser camaleoa. Mas antes trocava só a aparência, algumas vezes para ser aceita, outras pra marcar posição de diferença. Mudava a cor do cabelo, cortava na máquina três, transformava meu corpo. Como uma atriz que precisa mudar o personagem a cada novela. De camaleoa, sinto que agora estou mais pra lagarta que passou longa temporada no casulo e quer voar.
Desta vez, a mudança vem de dentro pra fora. Às vezes incomoda quem está do lado porque ninguém faz uma mudança dessa sem afetar quem está muito próximo. Quando eu mudo, não mudo sozinha. Se eu acendo um fósforo, corro o risco de acordar quem está dormindo ou provocar um incêndio. Sei do meu limite e vou tateando pra encontrar o limite do próximo. O outro se desconforta porque espera de mim uma resposta que eu não mais posso dar. Já fui desafiada:
- E sua compaixão, onde ficou? Calce minhas sandálias.
De bate-pronto, irritada, pedi pra que calçasse as minhas também. Em outras épocas, jogaria meus sapatos fora e colocaria os do outro, por mais apertados que fossem. Meus pés criariam bolhas e eu não reclamaria.
Empatia da boca pra fora é fácil, mas não acontece por obrigação. Precisava primeiro ter a paixão por mim mesma para depois encontrar a compaixão pelo outro. O diálogo seguiu me incomodando. Somente dois meses depois, me sinto segura para dar a resposta.
- Vou calçar suas sandálias porque agora me vejo preparada para conhecer não só você. Percebi que seus sapatos vão me mostrar uma parte de mim que eu não queria ver.