Dez amores nos tempos do Corona

Uma mulher e um homem, com sacos plásticos cobrindo a cabeça, se acariciam
Foto: Irving Penn/Vogue

*Tom Fernandes

Hoje uma amiga me contou do vizinho que terminou o namoro porque a amada só queria churrascos com os amigos, contrariando as medidas sanitárias, apesar de ele ser de grupo de risco. Outra pessoa quer se separar porque perdeu, de súbito, o interesse pelo companheiro. O rascunho do conselheiro prescreveu ser mais fácil ser feliz sozinho, sem brigas banais, sem os desafetos diários.

O amor tem sido vítima frequente nestes tempos de incerteza, se arrastando surdo na esteira da covid-19.

Aqui, sim, e também por todos os lugares, casais se viram forçados à mais cruel das escolhas, a convivência forçada ou o exílio involuntário. E sucumbiram. Casais à beira do fim romperam diante da iminência de não-futuro, casais à porta de uma nova paixão viram cupido recolher flechas enquanto punha máscara e lavava as mãos, talvez com álcool em gel.

De repente, o silêncio. De repente, a primeira menção ao amor já como “ex” e o baque dele se entendendo pretérito-mais-que-perfeito. Para que lutar por um amor quando a ordem é lutar pela vida?, atiram em misericórdia. Tentaram cloroquina para juntar os cacos, mas foi mais um retumbante fracasso. O amor não aceita genéricos.

O que restará após o fim? A quarentena será lembrada como o fim de quantas relações, quantos amores?

No epicentro chinês, milhares de divórcios consumados. Nas redes sociais, milhares de pessoas carentes por um pouco de diversão ou algo mais, mas não um amor. O amor se tornou concreto demais para os tempos líquidos em que vivíamos antes do Corona. Agora que tudo parece desmanchar no ar como gotículas suspensas das quais fugimos isolados em casa, não há mais máscaras a manter e é previsível que, num futuro qualquer, as pessoas se refiram à quarentena como “o tempo em que a gente ainda namorava”.

Sorte dos que acharam na bagunça dos dias perdidos mais que companhia, pessoas companheiras. Sorte dos afortunados que encamparam juntos o desejo de viver, não só sobreviver, de estar juntos numa versão fim do mundo dos antigos compromissos de dedinho cruzado “nós dois contra o resto”. Sorte de quem, olhando para o que está por vir, teve a coragem de dizer “só tinha que ser com você”.


*Tom Fernandes é bisneto torto de uma amiga de infância da vizinha de Cora Coralina. Daí vem seu interesse pelas artes, especialmente a literatura. Enquanto não publica seu primeiro livro como escritor, trabalha nos livros dos outros há mais de duas décadas. Amante da boa mesa e do bom copo, vive às turras com o gordo que há em si. É pai do Benjamim e acredita que o amor não é docinho.

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