Minha flor é bem-me-querer

Imagem ilustrativa de uma margarida, usada no texto sobre relacionamento abusivo escrito por Renata Varandas
Foto: Pixabay

*Renata Varandas

Era inverno, apesar de oficialmente o calendário gregoriano me dizer verão. Estava gelada e dilacerada. Ferida aberta, em carne viva. Insuportavelmente dolorida. Mas você chegou me oferecendo o que eu mais precisava naquele momento: cuidado. Aceitei.

Como um médico habilidoso, você passou a cuidar do meu ferimento latente e foi descobrindo outros, menores, mas igualmente doloridos. O inverno começava a degelar. Se preocupava se eu havia almoçado e com quem eu havia dividido a mesa. Controlava todos os meus horários porque era preciso saber se eu estava sã e salva.

Sempre me cuidando. Já me sentia aquecida.

Enquanto você tratava minhas feridas, doía. Mas era para o meu bem, você dizia e eu, obedientemente, acatava. A saia-lápis branca foi proibida no trabalho. A preta era muito curta. Alguém poderia me desrespeitar. Neste período foi até bom eu ter guardado essas roupas porque elas não couberam mais nos oito quilos que ganhei depois que te conheci. Fruto da minha hibernação.

Ouvir a verdade doeu, mas foi para o meu bem: “Você é uma mulher vulgar, que parece estar sempre disponível para o homem que quiser”. Chegou a me dizer que não sabia onde estava com a cabeça quando decidiu se relacionar com uma mulher que se porta como eu.

Lembro que tentava rebater, mostrar que você me conhecia há pelo menos uma década e que nunca, durante todo estes anos, havia ouvido qualquer rumor que envolvesse meu nome. Mas não havia argumentos. Você estava apenas cumprindo o seu papel de me preservar e eu deveria agradecer por tamanho cuidado e carinho.

No trabalho, passei a ter medo de que você me visse conversando com qualquer homem.

Enquanto colhia informações que eu precisava, não sabia se prestava atenção em quem me falava ou em volta, em pânico de que você aparecesse. Foram tantos apuros! Quanta adrenalina. Nunca havia trabalhado em um ambiente tão emocionante.

Os colegas de trabalho passaram a vilões. Os amigos homens, também. E algumas amigas, saidinhas demais, eram até destratadas por você. Foi também muito importante pra mim você ter me dito repetidas vezes, como em um mantra, quem eu era de verdade: “Você não é tudo isso que você pensa. Você não é nada”.

E esse mantra parecia se consolidar. Todos os dias, independentemente da estação do ano, você me lembrava o quão medíocre eu era profissionalmente e pessoalmente. Mas você supria tudo isso. Era o melhor, o imbatível, o determinado, o autossuficiente.

Nossas brigas eram cada vez mais violentas e eu comecei a te evitar para fugir do embate. Logo eu, que sempre tive horror a conflito, passei a não me reconhecer. Mesmo assim, ainda acreditava que você era a minha melhor opção.

E sabe o que aconteceu? Aquela mulher inteligente, independente, decidida, bonita, bem-humorada, de autoestima elevada que você conheceu e pela qual se apaixonou foi se desfazendo, pétala a pétala, como acontece com as flores no outono. Aquela mulher não existia mais nem pra você, nem pra mim.

Procurei ajuda. Fui parar na terapia, descobri o budismo, pratiquei meditação, me dediquei ao autoconhecimento. Tudo em busca do melhor de mim. O pior, eu já havia descoberto.

Foi um processo lento. Me reconstruir não foi simples. Eu havia me esquecido quem eu era. Passei a juntar meus cacos. Tão pequenininhos, tão cortantes. Fui colando um a um. Um longo processo hibernando sozinha. Você não percebeu.

A hora de dizer tchau doeu.

Eu sabia que lá fora tinha sol, mas tive dúvidas se sobreviveria a altas temperaturas. Mas, aos poucos, passei a me lembrar que eu gostava sim do verão. Decidi encarar.

Hoje saí do meu inverno. Não piso em terras gélidas nunca mais. Entendi que é importante viver as quatro estações, mas sem exageros. Nem inverno ártico, nem verão carioca. Procuro um clima mais ameno agora. Minha flor não gosta de oscilações. Nem de temperatura, nem de humor, nem de amor. Minha flor é apenas bem-me-quer.


*@revarandas é jornalista e descobriu que nem todo cuidado é amor. É colaboradora fixa do blog, escreve às terças-feiras, duas vezes por mês. Também é uma das organizadoras do Podcast Vida de Adulto.

2 thoughts on “Minha flor é bem-me-querer

  1. Sinto muito que você tenha passado por isso. Mas dá pra ver que você já conseguiu se reconectar com você mesma e está agora ainda mais fortalecida. E é isso que importa! Que você viva ainda mais plenamente e da forma como decidir, de saia curta ou não, sendo “””vulgar””” (que é como chamam a mulher que ousa não se envergonhar do seu corpo) ou não. E, principalmente, sendo respeitada pessoal, e também profissionalmente, independentemente da sua aparência. Você é forte! E merece toda a felicidade do mundo!

  2. Texto maravilhoso! Me senti observando uma escultura, obra de arte extraída da pedra bruta para se transformar em poesia e beleza! Que sua flor do bem querer persevere por todas as oscilações que as estações da vida trazem.

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